Ainda Estou Aqui
dirigido por Walter Salles
2024
2024
Texto de Agatha Fernandes
O ano de 2024 marcou o 60º aniversário do Golpe de 1964, que depôs o presidente democraticamente eleito João Goulart, e instaurou um regime ditatorial regido pelo Exército Brasileiro, dando origem a um período de absolutismo político, no qual o Exército e a polícia tinham poder de prender cidadãos sob qualquer suspeita de “comportamento transgressivo”, sem o devido processo legal - cidadãos que, por muitas vezes, nunca voltavam do cárcere. Uma dessas pessoas foi o ex-deputado Rubens Paiva, que, em 1971, foi levado de sua casa e nunca mais foi visto, deixando seus cinco filhos e sua esposa, Eunice Paiva, desamparados. Tal história é contada no novo filme de Walter Salles, ‘Ainda Estou Aqui’, que conta com Fernanda Torres e Selton Mello como o casal Paiva.
O filme se inicia com a família Paiva curtindo uma tarde na praia, Eunice flutua no mar enquanto suas crianças se divertem na areia. Imagens mais serenas que essas são difíceis de se imaginar; no entanto, helicópteros sobrevoam o oceano, e furgões da polícia cruzam as ruas. A vida na classe média-alta carioca podia até ser confortável, mas, mesmo assim, a Ditadura nunca se deixava ser esquecida.
Todo o primeiro ato do filme é pautado nessa dicotomia. Nos é mostrada uma família contente, vivendo sua melhor vida. Eles planejam construir uma nova casa, a filha mais velha vai para Londres e cenas gravadas em Super-8 evocam imagens universais de gravações antigas que seriam vistas em reuniões de família. Mas a opressão do povo brasileiro nunca deixa de ser mostrada. Blitzes povoam as ruas do Rio, o telejornal relata o sequestro de mais um diplomata, Rubens e seus amigos intelectuais discutem os acontecimentos recentes. Até que, em um fatídico dia, essa repressão entra na residência Paiva, levando Rubens e, com ele, a alegria contagiante da família.
Quando Rubens é levado - e nas cenas subsequentes, onde Eunice também é encarcerada por duas semanas - tudo muda, não apenas na narrativa de Eunice, mas também na linguagem audiovisual do longa. A fotografia do filme, que antes era serena e bem iluminada, é tomada por um chiaroscuro opressivo, a escuridão toma conta da residência Paiva, com apenas alguns pontos de luz para iluminar os personagens. Sons inocentes remetem a facas sendo amoladas e armas de fogo sendo engatilhadas. Durante esses 20 minutos, o filme se transforma em um suspense brutal.
Após Eunice ser liberada, começa sua luta pelo reconhecimento da prisão de Rubens pelos militares, algo que negam veementemente, e por sua liberação. Tudo isso, enquanto ela tenta proteger seus filhos da gravidade da situação em que se encontram. A performance magistral de Fernanda Torres comunica perfeitamente este conflito. Uma mãe que, enquanto lida com o luto pelo desaparecimento do seu marido, tentando lutar para que ele volte para casa, também tenta esconder esse pesar de seus filhos, e manter sua família feliz através de toda essa turbulência. Uma contradição que está constantemente estampada no rosto de Torres, uma melancolia e raiva borbulhando sob a superfície, mas se segurando para não deixá-las vir à tona na frente de seus filhos.
O roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega, junto com a direção de Salles, sabiamente nunca deixam o filme afundar em uma melancolia exploratória, optando por uma sensação agridoce. Essa escolha permite com que o público se conecte de uma maneira mais empática com a personagem de Eunice Paiva, ao invés de apenas sentir pena dela. Apesar da angústia sufocante que permeia a história, Eunice nunca se deixa ser derrubada, se esforçando para que sua família não seja definida pelo que sofreu, para que seus filhos possam ser felizes em meio ao luto. Para que a memória de Rubens Paiva seja marcada pela felicidade que ele trouxe, e não pela injustiça a qual foi submetido. Nas palavras de Chico Buarque: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.”
‘Ainda Estou Aqui’ pode, portanto, ser lido como um ensaio sobre a memória e seu peso em nível tanto pessoal quanto social. Em uma cena, os filhos de Eunice e Rubens, já crescidos, olham por uma caixa de lembranças, discutindo suas memórias de infância com um misto de carinho pelos momentos bons, e pesar pelo pai que não está mais com eles.
Ao finalmente conseguir o atestado de óbito de Rubens, Eunice diz para uma jornalista que, mesmo após o fim da Ditadura, são necessárias reparações para as famílias afetadas pela brutalidade dos militares, para que lembremos do que sofremos, e para que futuras transgressões não cheguem a acontecer, ou que, pelo menos, não passem impunes.
Desta forma, Salles mostra que é sempre importante lembrar do passado, para saber de onde viemos e, consequentemente, para onde vamos; mas ele também mostra a importância da maneira como lembramos. Eunice e seus filhos lembram de Rubens com ternura, não deixando a tristeza dominar suas memórias. Eunice fala sobre a Ditadura não com rancor, mas como uma oportunidade de aprendermos como sociedade para não deixar algo assim acontecer de novo.
Da mesma maneira que Eunice, como nação, nunca esqueceremos a inumanidade daqueles que detinham poder absoluto em suas mãos, nunca esqueceremos o impacto dos milhares de desaparecimentos, nunca esqueceremos da opressão despótica dispensada pelos militares sobre o povo brasileiro.
Publicado em 19 de novembro de 2024