Ficção Americana
dirigido por Cord Jefferson
2023
2023
Texto de Bianca Tracanella
“Ficção Americana” é um filme tão real que quase chega a ser sátira. Contando a vida do escritor com espírito de grandeza, Monk ou Thelonious 'Monk' Ellison (Jeffrey Wright), o filme traz uma reviravolta absurda mostrando o quão capaz a nossa sociedade é de alterar até mesmo as questões de caráter mais internas que podemos ter.
Monk é um escritor sem muito prestígio por escrever bons livros, porém de forma culta, dificultando o acesso à sua própria literatura e afunilando seu público. Quando sua irmã, Lisa Ellison (Tracee Ellis Ross), falece, logo no início do filme, o escritor se vê no primeiro grande conflito: lidar com a sua família, tal qual a possível criadora da sua dificuldade de evidenciar e conversar sobre sentimentos.
A direção de fotografia entrega tudo misturando emoção nos detalhes mesmo em planos médios, e mais ainda em abertos como no funeral de Lisa, que ocorre na praia. A correção e qualidade de cor atribuem até em qualidades menores de visor, como televisões analógicas, computadores e notebooks mais antigos, além de trabalhar muita luz natural por muitos cenários abertos, como a praia e suas redondezas. Há também muita mistura de cor quente e fria, focando luz quente com maior enfoque (total e não apenas detalhadas como abajures e parecidos) em ambientes de conforto e zelo, como na casa de sua mãe.
Da mesma forma, a direção de arte também entrega muito na paleta de cores artística do filme, como as roupas e a própria limitação de luz. O filme se faz sofisticado com paletas quentes, escuras e cores passivas, não tão marcantes, mas que destacam a pele dos atores juntamente com a luz. Não se encontra, por exemplo, cores chocantes como rosa pink ou verde-limão.
Em torno do filme, descobre-se, então, que seu querido pai (talvez o único personagem ao qual fosse próximo) se suicidou na casa de praia de sua família, a mesma em que se encontra sua mãe, Agnes Ellison (Leslie Uggams), que agora é confirmada com início de Alzheimer. Um pai suicida, uma irmã morta, uma mãe doente e, agora (também), um irmão usuário de drogas recém-assumido gay.
O que mais seria necessário para uma virada de chave?
O filme conta com diversos fatores provocadores de conflito - como o suicídio pesadíssimo de seu pai -, mas vê-se, de forma sublime, o seu principal como a própria mente de Monk, reativa às suas maiores dores, fazendo com que ele seja um personagem cansado, explosivo e, apesar de muito culto, burro (emocionalmente falando).
Após tentar vender mais livros inteligentes e de boa leitura, Monk se irrita e cria o “My Pafology”, - que, mais para frente, vira o livro “Porra” - um livro que, basicamente, conta uma história de uma família quebrada que se desfaz na pobreza, violência e dificuldades sociais, no qual, em seu final, o filho mata o pai depois de um discurso pesado sobre paternidade e é preso pela polícia. É importante ressaltar que o foco do livro é indagar sobre a negritude dos personagens e vivências de cunho pejorativo da raça negra, no sentido de limitar suas histórias em dores, sofrimento e má reputação.
“My Pafology” vira interesse público de um produtor de filmes famoso chamado Willey (Adam Brody), ele oferece 750 mil reais, que Monk aceita após repensar muito.
O humor quase sádico aparece mais a cada minuto do filme, sendo quase impossível não soltar um riso frouxo de descontentamento ou mesmo descrença ao assistir. Um desses momentos é quando Monk precisa fingir ser “um mano”, usando muitas gírias, palavrões, desagrado na conversa, para manter uma postura da qual não pertence, visto que, em seu jeito natural, apesar de pacato e explosivo, internamente é uma flor que desabrocha. Monk é um homem sem graça, já seu pseudônimo Stagg R. Leigh é cool, é um fugitivo procurado que fala sobre sua própria vivência.
A falta de senso nas palavras soltas e jogadas totalmente expressivas não provam mais do que a realidade atual vivenciada na geração Z, que mede “playboys” com pouca visão periférica do mundo VS os “da quebrada” tentando ter uma oportunidade de ser aquilo que desejarem. Mas mais que isso, o filme ressalta a necessidade quase que patológica de pessoas brancas de provarem que entendem o que os negros sentem, que “estão ao seu favor”, e “que são parças”.
Enquanto vive essa realidade paralela de mentiras, pseudos, raiva de si e outros, ele também tenta conciliar sua família incrementando Coraline (Erika Alexander), sua nova namorada, ao caos de sua vida.
A inércia transpassada no filme mostra que a agressividade de Monk irradia por frustração ao que vivencia e nega sem dó nem pena de si: ele vê o racismo, o preconceito, e tenta ser mais do que sua pele escura, mas quando a nega, nega a si, assim, criando uma casca de mau-humor que julgam ser parte da vida adulta, o que é considerado comum em nossa sociedade, mas segundo o estudo “O QUE OS PAIS FALAM SOBRE SUAS HABILIDADES SOCIAIS E DE SEUS FILHOS?”, da Revista das Faculdades de Educação, Ciências e Letras e Psicologia Padre Anchieta, pais negligentes e/ou inadequados tem grande influência nas habilidades sociais de seus filhos e são um possível causador para filhos IPC (Indicação de Problemas de Comportamento).
Assim, é importante ver o protagonista com olhos sensíveis para a tela e suas vivências, mas quando puxamos mais a frente o roteiro criado para a história, vemos a qualidade na entrega que independe do estudo acima, vemos pontos importantes que ressaltam essa dificuldade de confiabilidade e sociabilidade em assuntos sensíveis e pessoais, mas a extrema facilidade explosiva, irônica e amargurada, que faz com que a sátira do filme seja mais leve, visto que a todo o momento o filme se enrosca em situações práticas do dia-a-dia de forma cômica, no famoso “rir para não chorar”.
É claro que o livro de Monk, “Porra”, vence o Festival Internacional de Cinema de Toronto, após um embate entre pessoas brancas defendendo o mesmo e dois negros defendendo a má qualidade da obra - tudo parece uma grande piada.
Cenas da premiação começam a ocorrer e percebe-se que algumas são ficcionais. Logo, é possível ver o que é real e o que não é, o que foi criado para uma adaptação do “Porra” e o que realmente ocorreu. No fundo, Monk cedeu à sociedade pacata em que tanto recusou e fez aquilo que ele mesmo não aceitava e até o que nem imaginava que poderia fazer: cedeu ao capitalismo e suas superficialidades conteudistas.
Publicado em 27 de março de 2024