Homem com H
dirigido por Esmir Filho
2025
2025
Texto de G. S. Neves
"Homem com H" logo de cara se apresenta como uma obra sensível e delicada. O filme, dirigido pelo talentosíssimo Esmir Filho, acompanha a jornada de Ney Matogrosso (Jesuíta Barbosa) e retrata não apenas sua carreira, mas também as dificuldades enfrentadas por uma pessoa LGBTQ+ em uma sociedade marcada pelo preconceito, principalmente naquela época.
A experiência de assistir a esse filme foi ainda mais significativa por poder levar minha família ao cinema comigo: meus pais e minha avó. Vendo-os emocionados diante da tela, senti que o filme realmente conseguiu tocá-los em algo profundo. Minha mãe sempre foi fã do Ney, mas eu não queria apenas que ela apreciasse suas "loucuras" artísticas no palco. Eu queria que ela entendesse a complexidade e os sentimentos de alguém LGBTQ+ na sociedade. Esmir Filho conseguiu passar essa mensagem de uma forma extremamente tocante. A grande sacada do filme é que ele não se limita a ser apenas sobre Ney: é sobre todos nós, sobre como é viver à margem da sociedade e, ainda assim, encontrar um caminho para brilhar.
A interpretação de Jesuíta Barbosa como Ney Matogrosso é um dos grandes destaques do filme. Ele conseguiu trazer para a tela os gestos, as expressões e a alma do cantor de uma forma tão sensível que, por momentos, parecia que estávamos vendo o próprio Ney. A profundidade da interpretação de Jesuíta é fundamental para a construção dessa conexão emocional com o público.
O que me deixou profundamente tocada foi a reflexão que o filme me proporcionou sobre o passado, especialmente sobre a época da epidemia de HIV/AIDS. Eu não vivi esse período, mas é impossível não me questionar sobre como seria se eu estivesse viva naquela época. Isso tudo me foi trazido no diálogo entre Ney e Marco de Maria (Bruno Montaleone), quando Marco afirma que a AIDS veio para destruir pessoas como eles e Ney responde que, na verdade, ela veio para mostrar que eles existem. Essa parte do filme é uma lembrança de como os pioneiros da arte, como Ney, são fundamentais na luta para que as gerações mais jovens possam existir com mais dignidade. Ney Matogrosso sempre foi um símbolo de resistência e coragem. E ele sempre vai ser gigante.
O filme retrata o sexo, as drogas e os dilemas sociais sem cair na romantização. As drogas estavam presentes naquele meio, mas o filme não tenta idealizá-las, ele apenas as apresenta como uma parte da realidade que muitos artistas vivem. Da mesma forma, a sexualidade de Ney não é tratada como algo a ser julgado ou problematizado, mas sim como algo natural. O filme não questiona o sexo gay, mas o coloca no mesmo patamar de qualquer outro tipo de sexo. Quantos filmes já vimos em que a relação sexual entre um homem e uma mulher é retratada de forma natural, sem questionamentos? Por que a sexualidade de um homem gay precisaria ser tratada de forma diferente? Esmir Filho faz isso com uma sensibilidade admirável.
A relação de Ney com seu pai é algo que também marca bastante. Inicialmente, ele enfrenta um pai agressivo e homofóbico, que o proíbe de seguir sua carreira artística. No entanto, há uma evolução nessa relação, que se torna um exemplo de conciliação. No fim da vida, o pai de Ney acaba respeitando e até admirando o filho por tudo o que ele conquistou. Isso é emocionante, mas também me fez refletir: e se Ney não tivesse alcançado o sucesso? E se ele fosse um artista LGBTQ+ sem êxito, como muitos no Brasil? Será que seu pai teria tido essa evolução mesmo assim?
Outro ponto que me marcou foi a relação de Ney com Cato (Augusto Trainotti). A amizade entre os dois é clara, mas, devido ao contexto militar opressor da época, não se transforma em um amor físico. Essa amizade é uma representação de como muitos vivem relações platônicas, sem nunca poderem concretizá-las. Cato, anos depois, volta casado e com filhos, 'cumprindo o protocolo', como ele mesmo diz. Se hoje ainda é difícil se assumir uma pessoa LGBTQ+, imagine naquela época? Cato é um exemplo de alguém que nunca pôde ser quem realmente era, por medo.
Por fim, a única crítica que tenho para o filme é em relação à história de Ney com Cazuza. Como fã de Ney, e também de Cazuza, eu gostaria de ter visto mais sobre o romance dos dois. O filme aborda essa relação de forma admirável, mas eu teria explorado ainda mais essa parte da vida deles. No entanto, entendo que o foco do filme é a trajetória de Ney Matogrosso e que a forma como a história foi contada também é bela e significativa.
No geral, "Homem com H" é um filme que precisa ser assistido pelo mundo inteiro, tenho certeza que vai tocar algumas pessoas em pontos bem específicos. A equipe está de parabéns pela construção de uma obra sensível, honesta e essencial. A história de Ney é uma história de resistência e conquista, mas, para muitos, ainda é uma luta diária.
Publicado em 06 de maio de 2025